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Sadomasoquismo

Dobrou os joelhos, caiu em oração. Os dedos do pé se amassaram com o peso dos calcanhares, sufocados. As palmas cruas apontaram aos céus, clamando pelo açoite, e a expressão desceu para baixo da linha dos ombros, lamentosa. Cabelos longos borravam seu rosto, e tampavam a total miragem do peito as coxas. Em um golpe limpo, atingi a nudez de sua mão com a chibata. A reação fora de um gemido prolongado. Um suspiro quase de alívio, atrevido. Era nítido meu semblante estarrecido. ''Como pode alguém rebaixar-se a tão pouco?'', indaguei-me, no silêncio. ''Comparar-se a migalhas? Gozar da própria miséria?''. Concluí então, que o que me tampava a essência do ato banal, era que a dor esvaía-se da carcaça com a tortura física. Na realidade, sequer era digno do nome de ato sádico. Havia um contrato silencioso entre as duas partes. Qualquer sicário, por mais tortuoso que fosse, jamais concluiria a misteriosa tarefa de levar aquela pobre criatura ao estado de ag

Aluguel

por trás desse muco debaixo da ossada e do músculo entre as artérias menor que a veia cava e os fios de cabelo cá estou eu vendo tudo mexer ouvindo as polias rodando o encontro das cartilagens rangendo o arrepio e as dores fantasmas o toque que marca e o que mal trata a pele sensível ao tato latejante o beijo mais em baixo a trinca do fêmur e do peito moro aqui de inquilino e pretendo ficar até quando der

Traduzindo o onírico

Passeei pela avenida, com os pés descalços. Estava vazia, como em nenhuma outra segunda.               O céu tinha cara de domingo, como a rua                                              mas um domingo de março,                                                             com seus rios voadores.              não era março, nem domingo, mas tinha essa cara simpática a chuva varria a sujeira, as inibições e as angústias para as bocas de lobo. um toró revigorante surrava as palmeiras, e as minhas costas. também surrava as memórias. E os rios. também os sem-teto. E os cães de rua. as latas não sentem, os vira-latas sentem até demais. Não tenho pedigree, meu cabelo é castanho escuro, meu cílio é loiro, e por esses dias, achei um pelo ruivo no meio da barba. Já me chamaram de cachorro. Acho que sou vira-lata. Vivo solto. Passeio pela avenida, com as patas rachadas A chuva me faz chorar.
um livro vestido sem seda, ou costura um papel ostentado, tesouro que não se mede em quilates palavras são tão caras os troféus do autor são fetiches as máscaras que ornamentam frases caprichosas, como um brinde seguido do gole que tem gosto de champanhe              refinada                 pomposa pra espantar a fome. um título qualquer ampliado, em negrito seguido de um nome estampado em alguma capa, de algum canto pra que algum leitor curioso, cativado pelo encanto do itálico possa saciar a curiosidade de alcançar a      última linha     de um poema.

Sessão de terapia

  Flertou com a própria morte as três noites anteriores. Bebeu demais, abandonou os remédios, levou um pé na bunda da namorada. O pneu do carro furou, a cozinha pegou fogo, o vizinho matou o gato atropelado. Que toró maldito! Pelo menos, a tempestade que alagara a casa do coitado fez a gentileza de acompanhá-lo por todo seu trajeto ao consultório. Agradeceu aos céus por finalmente entrar, e ensopado, fez seu lugar no recinto, aguardando o horário matutino da sessão. Os olhares piedosos das secretárias não desgrudaram do rapaz até deixar a saleta, adentrando o covil do psicólogo. Assim que colocou os pés ali, despencou toda a sua constituição na conhecida cadeira encourada, relaxando os músculos diante do seu ''ouvinte'' semanal.  —  Bom dia, Guilherme. Recebi as suas mensagens. Como você está?  — Opa! Tô bem sim, e você? E o silêncio tomou conta da sala. 

No centro, não

 Morar em capital está fora de cogitação. Sei por que já visitei algumas. Não é repúdio, nem inveja. Também não é falta de ambição. Algo que definitivamente me incomoda são os prédios. Verticalmente majestosos, rasgando o seu espaço na malha urbana, com terraços que furam as nuvens. É inevitável imaginá-los caindo sobre a minha cabeça, tombando com todas as suas toneladas cinzentas, esmagando o pouco que sou. Seria como uma torre negra comer um mero peão branco, no xadrez de concreto. O pensamento é até improvável, mas incomoda o suficiente para instigar uma constante sensação de fraqueza diante do imenso. Não raramente, ela se agrava, e toma a forma do que só cabe na definição de um excêntrico medo de altura. Um temor, não de estar sobre, mas sob, algo com inúmeros pés de tamanho. É um estado ironicamente sufocante.  Outra coisa enorme são as ruas. Grandes rios secos, recheados de canoas motorizadas. Mas, do que adianta a extensão, se há tantos pescadores? É mais fácil ser fisgado ao

Fantasmx do meu banheiro

 Todo novo banho, cresce a certeza de que há um poltergeist no meu lavatório. Já até me acostumei com a ideia de estar sendo perseguido por algum morto voyeur . Algumas coincidências foram fáceis de arranjar explicação, e não me incomodavam. Achei até gozado as trocas de escova. As roupas fora do lugar. Os estalos no meio da madrugada. E, leia bem, não existe pessoa mais cética do que eu. Agora, até que ponto é fantasia quando a luz começa a falhar logo durante a tirada do xampu? Um breu de repente, enquanto estou de pé, diante do vaso, com as calças arriadas? Ou, na pior das ocasiões, a escuridão cai bem quando estou usando o trono sagrado, na hora da queda do marrom? É de cortar a bosta ao meio. Comecei a enxergar essa patifaria como um ataque pessoal.  Talvez a assombração não pensasse maldades até, em um ato banal, eu errar o vaso, e mijar no pé dela. Por que não? Em minha defesa, não há um fuzileiro que não tenha errado um tiro. E pela manhã, ao acordar, é mais difícil. Nem pre