Psicografia

 Aconteceu de repente. Foi de acidente, de tiro ou de algum câncer. Não me lembro. Mas também não sinto vontade de saber. Como poderia? Não sinto mais nada. Morri, afinal! Quem chora é a viúva, a mãe, o órfão. O luto e a miséria ficam no plano de quem ainda tem hora. O mesmo vale para o gozo do inimigo, para a gargalhada do amante. Não há divagação na terra das botas batidas, e nela se perdem todos os devaneios, sejam eles sorrisos ou mágoas. Em morte, encontro pouco sentido ao buscar o esclarecimento de um final. No breu claro do nada, tudo é nulo. Há tanta luz quanto sombra. Me tornei um nó bem atado, quase cego. A maior sensação é, ironicamente, a falta dela.
 Como poderia haver um céu, se aqui não tem chão? Não tem árvore para dar sombra, e não tem sol para queimar as costas. Não chove. Falta água, e falta sede. Não há comida para matar a fome, nem fome para matar. Também não há como matar, pois já morreu. A certeza é de que se algo está aqui, é porque está morto. Foi para o saco. Virou presunto. É o eterno empate que chega para todos. Zero a zero para o cosmos.
 Não tem fogo eterno. Calor é uma irrealidade. O demônio está bem vivo, por aí, com vários nomes. Não se tortura um corpo sem tato. A dor acaba quando os olhos se encontram, e o futuro é anestesiado. Irrelevante. Fim. Se pudesse sentir falta de algo, seria do caos. Isso é o que define a vida. O silêncio da partida é ensurdecedor. Teria aproveitado os momentos de fúria, as depressões aterradoras. Me entregado mais as paixões fogosas, aos prazeres da carne e a embriaguez. Um pecadinho de vez em quando também não faria diferença, nunca fez. Se alguém um dia deu-me um corpo, e o encheu de desejos, foi para aproveitar enquanto era vivo. Agora, já foi, aproveite você, que eu não existo mais.

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