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Mostrando postagens de maio, 2020
um livro vestido sem seda, ou costura um papel ostentado, tesouro que não se mede em quilates palavras são tão caras os troféus do autor são fetiches as máscaras que ornamentam frases caprichosas, como um brinde seguido do gole que tem gosto de champanhe              refinada                 pomposa pra espantar a fome. um título qualquer ampliado, em negrito seguido de um nome estampado em alguma capa, de algum canto pra que algum leitor curioso, cativado pelo encanto do itálico possa saciar a curiosidade de alcançar a      última linha     de um poema.

Sessão de terapia

  Flertou com a própria morte as três noites anteriores. Bebeu demais, abandonou os remédios, levou um pé na bunda da namorada. O pneu do carro furou, a cozinha pegou fogo, o vizinho matou o gato atropelado. Que toró maldito! Pelo menos, a tempestade que alagara a casa do coitado fez a gentileza de acompanhá-lo por todo seu trajeto ao consultório. Agradeceu aos céus por finalmente entrar, e ensopado, fez seu lugar no recinto, aguardando o horário matutino da sessão. Os olhares piedosos das secretárias não desgrudaram do rapaz até deixar a saleta, adentrando o covil do psicólogo. Assim que colocou os pés ali, despencou toda a sua constituição na conhecida cadeira encourada, relaxando os músculos diante do seu ''ouvinte'' semanal.  —  Bom dia, Guilherme. Recebi as suas mensagens. Como você está?  — Opa! Tô bem sim, e você? E o silêncio tomou conta da sala. 

No centro, não

 Morar em capital está fora de cogitação. Sei por que já visitei algumas. Não é repúdio, nem inveja. Também não é falta de ambição. Algo que definitivamente me incomoda são os prédios. Verticalmente majestosos, rasgando o seu espaço na malha urbana, com terraços que furam as nuvens. É inevitável imaginá-los caindo sobre a minha cabeça, tombando com todas as suas toneladas cinzentas, esmagando o pouco que sou. Seria como uma torre negra comer um mero peão branco, no xadrez de concreto. O pensamento é até improvável, mas incomoda o suficiente para instigar uma constante sensação de fraqueza diante do imenso. Não raramente, ela se agrava, e toma a forma do que só cabe na definição de um excêntrico medo de altura. Um temor, não de estar sobre, mas sob, algo com inúmeros pés de tamanho. É um estado ironicamente sufocante.  Outra coisa enorme são as ruas. Grandes rios secos, recheados de canoas motorizadas. Mas, do que adianta a extensão, se há tantos pescadores? É mais fácil ser fisgado ao

Fantasmx do meu banheiro

 Todo novo banho, cresce a certeza de que há um poltergeist no meu lavatório. Já até me acostumei com a ideia de estar sendo perseguido por algum morto voyeur . Algumas coincidências foram fáceis de arranjar explicação, e não me incomodavam. Achei até gozado as trocas de escova. As roupas fora do lugar. Os estalos no meio da madrugada. E, leia bem, não existe pessoa mais cética do que eu. Agora, até que ponto é fantasia quando a luz começa a falhar logo durante a tirada do xampu? Um breu de repente, enquanto estou de pé, diante do vaso, com as calças arriadas? Ou, na pior das ocasiões, a escuridão cai bem quando estou usando o trono sagrado, na hora da queda do marrom? É de cortar a bosta ao meio. Comecei a enxergar essa patifaria como um ataque pessoal.  Talvez a assombração não pensasse maldades até, em um ato banal, eu errar o vaso, e mijar no pé dela. Por que não? Em minha defesa, não há um fuzileiro que não tenha errado um tiro. E pela manhã, ao acordar, é mais difícil. Nem pre

Veredito

será que a culpa é minha ou será que é deles? será que é de um só                     ou dos dois                     ou nós três? será que é ninguém,                  ou somos todos? será que é o divino,                     o capeta                     o meu signo                     ou o destino? que quer assim que precisa que se obriga? será que é pra ser? será que ela existe? ou é outra coisa será que é requinte? será que é genético? será que é maldade? será que sou cético ou me falta vontade? e essa dúvida me mata agora ou será que  mais tarde? será que tomei o remédio? será que não tenho nada? será que vivo sem? pulei a dose tomei a errada? melhor parar? será que é besteira? começo hoje termino amanhã ou deixo pra segunda-feira?                      não, pra terça                            melhor quinta                                acho que sexta está ótimo.

Psicografia

 Aconteceu de repente. Foi de acidente, de tiro ou de algum câncer. Não me lembro. Mas também não sinto vontade de saber. Como poderia? Não sinto mais nada. Morri, afinal! Quem chora é a viúva, a mãe, o órfão. O luto e a miséria ficam no plano de quem ainda tem hora. O mesmo vale para o gozo do inimigo, para a gargalhada do amante. Não há divagação na terra das botas batidas, e nela se perdem todos os devaneios, sejam eles sorrisos ou mágoas. Em morte, encontro pouco sentido ao buscar o esclarecimento de um final. No breu claro do nada, tudo é nulo. Há tanta luz quanto sombra. Me tornei um nó bem atado, quase cego. A maior sensação é, ironicamente, a falta dela.  Como poderia haver um céu, se aqui não tem chão? Não tem árvore para dar sombra, e não tem sol para queimar as costas. Não chove. Falta água, e falta sede. Não há comida para matar a fome, nem fome para matar. Também não há como matar, pois já morreu. A certeza é de que se algo está aqui, é porque está morto. Foi para o saco.

Velha infância

 É rotineiro, durante uma volta pelas praças da cidade depois que o sol deita, enxergar os bêbados mamando as garrafas, nas portas dos estabelecimentos. Não precisa nem ser o alcoólico mais deteriorado para chegar a tal ponto. São pais de família, casados. Muitos até acompanhados dos filhos. Seria essa a falta do peito materno? Passando do bico para a mamadeira, da mamadeira para o copo, e do copo para a garrafa. Do leite para o suco, do suco para o refrigerante, e do refrigerante para o álcool. Preenchendo o vazio da alma, ou do estômago. Indistinguível. Bebês de meia-idade.  E aqui a chupeta tem um sentido erótico.   Do primeiro dente que cai, aos primeiros sinais da osteoporose, somos crianças. Há um humor pueril em se admitir a real extensão da infância: eterna enquanto a vida dura, finita enquanto orgânica. O corpo tenta enganar com as suas exageradas transformações, mas não consegue esconder as marcas infantis. Explicarei: no âmago da casualidade, não há como diferenciar um fu

Matando o tempo

há uma questão que não sai de mim se as horas não são êxtases mas são poucas              rasteiras e morrem fácil se os ponteiros não são grossos mas de ofício apontam os números se as esperas não são socos mas roubam o ar e incomodam não conheço outra saída senão matar o tempo quebrando o relógio só assim aprendo a ter paz