Velha infância

 É rotineiro, durante uma volta pelas praças da cidade depois que o sol deita, enxergar os bêbados mamando as garrafas, nas portas dos estabelecimentos. Não precisa nem ser o alcoólico mais deteriorado para chegar a tal ponto. São pais de família, casados. Muitos até acompanhados dos filhos. Seria essa a falta do peito materno? Passando do bico para a mamadeira, da mamadeira para o copo, e do copo para a garrafa. Do leite para o suco, do suco para o refrigerante, e do refrigerante para o álcool. Preenchendo o vazio da alma, ou do estômago. Indistinguível. Bebês de meia-idade.  E aqui a chupeta tem um sentido erótico. 
 Do primeiro dente que cai, aos primeiros sinais da osteoporose, somos crianças. Há um humor pueril em se admitir a real extensão da infância: eterna enquanto a vida dura, finita enquanto orgânica. O corpo tenta enganar com as suas exageradas transformações, mas não consegue esconder as marcas infantis. Explicarei: no âmago da casualidade, não há como diferenciar um fumante perdido, passeando com o cigarro entre os dentes na porta de um bar, e um pirralho de fralda, chupando o polegar, distante do colo da mãe. Estragando os dentes, afugentando alguma angústia. Tão pouca idade no auge dos trinta. Raridade? Nenhuma! 
 Vale ressaltar que minhas falas não são julgamentos. Apontar o dedo está fora de cogitação. Como disse, eu, você, estamos todos inclusos nessa comparação. Acho até fofo. É inconsciente! Freud explica. Somos um maternal que aprendeu a enfeitar a fala e imitar os mais velhos. Fingimos bem demais, até. As brincadeiras de médico, papai-e-mamãe e polícia-e-ladrão alcançaram dimensões absurdas. Corriqueiramente, aparecem por aí, no noticiário, como fatos banais. Descuidos cirúrgicos, violência doméstica, tiroteio nas favelas. Mais do mesmo. Talvez seja daí que venha a apatia generalizada. É tudo uma grande brincadeira.
 Somos reféns da fusão das memórias às emoções. Essas, quando atadas lá atrás, tem um efeito perigoso. Presos aos abandonos, às carências, aos divórcios. Amarrados aos choros contidos, aos abusos, às primeiras fobias. Os traumas marcam a pele do cordeiro, que aprende a viver com a dor, mas também se condena à nunca esquecê-la. E nascem, assim, no meio da vida, os viciados, os perversos, os depressivos. Quem tem lacunas no peito e não sabe de onde surgiu. Não é plausível olhar para as construções psicológicas, mesmo dos mais violentos e imorais indivíduos, e não imaginar que nelas habitam crianças confusas e mal resolvidas. Se você, quando criança, conhecesse quem é hoje, teria medo ou admiração? As imagens desejadas e as verdadeiras são consideravelmente distintas.
  

Comentários

  1. Eu sinceramente, estou tentando LIDAR com essa crônica, vulgo obra de arte. Ao passo que temos o posicionamento da racionalidade, eclodiu críticas sobre a nossa consciência, sobretudo, social.
    Que bela viagem, cara.
    Arrasou!

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